Cotidiano

Quando se ama um retrato

Vivan Weiand

Sentado na frente do computador, o homem admira o retrato da bela noiva sobre sua mesa. Linda, sensual e cheia de amor para dar, aquela foto por muitos anos embalou seus melhores sonhos. Quanto tempo tem aquele instante? Nove anos, dez? Sim, dez anos. Quase uma década depois e sua esposa continua linda e mais ou menos sensual porque o amor para dar já não está lá essas coisas. Mas vá lá, é esposa, mãe de um filho e dona de 50% do seu patrimônio, o que já é um bom motivo para se frear as discussões quando elas ultrapassam a fronteira do aceitável.

Os tropeços começaram com a sogra, mulher que se sentiu a dona da casa com a chegada do primeiro, e único,  neto. A mulher do porta-retrato se sentiu um pouco desengonçada e fora do ninho, por isso  permitiu a entrada da mãe em sua vida, pessoa do lado da qual se sentia mais segura com as lides da casa e do bebê quando voltou da licença maternidade. Sua passagem não era novidade. A cor do berço eladecidiu; o nome do meio do menino já tinha ficado por sua conta e homenageava o marido falecido. O homem  que tecla o computador nunca mais pode andar de cuecas pela casa nem entrar em casa calçando sapatos, estes agora religiosamente deixados sobre um capacho na cozinha.

De vez em quando o homem que tecla o laptop puxa os olhos para o lado direito de sua mesa. É linda aquela foto. Saudade da mulher do porta-retrato, a mulher que sabia ouvir, a mulher que deitava no seu colo e assistia Jornal Nacional comendo pipoca doce. A figura retratada a sua frente ajeitava os lençóis, perfumava o quarto com aromatizador, passava creme no corpo antes de dormir. A mulher do porta-retrato estava  sempre sorrindo, pintava as unhas da cor que ele gostava e fazia estrogonofe às quintas-feiras, mesmo dia de usar um lingerie vermelho. A mulher do porta retrato, que  já foi a luz da sua vida, agora não passa de uma sombra de tudo aquilo que já foi vivido.

O homem ama a mulher do porta-retrato, e a amava antes de o filho nascer e antes daquela fila de babás – elas nunca paravam no emprego – deixá-la cada dia mais enlouquecida até que finalmente chamou por sua mãe. A partir dali, não foram apenas os interesses do menino que ficaram entre os dois, mas a avó dele estava entre os dois, as discussões sobre babás estavam entre os dois, a divisão dos custos estavam entre os dois.

O homem que tecla no computador dorme ao lado do que um dia foi a mulher do porta-retrato. A cor vermelha do lingerie nunca mais tingiu aquele quarto; acabaram-se os estrogonofes e a magia das quintas-feiras. A imagem da mulher do porta-retrato que desfilava pelos corredores da casa foi substituída por um semblante de meia idade e seu engomado coque de cabelos grisalhos sempre preso no alto da cabeça, figura gorda e autoritária que o recebe no final do dia quando volta do trabalho e isso inclui às quintas-feiras…

Pelo menos se economizou nos custos com babás.

Com a presença da sogra, economizou-se também os momentos de vida a dois, economizou-se em privacidade, economizou-se em qualidade de vida. No final do dia, o homem que tecla o computador não volta para a casa dele, mas para a casa da mulher que um dia estampou um porta-retrato, um dos motivos de ele retardar a saída do trabalho, despedida que deixou de ser interessante. É bom ficar ali e usufruir do vazio, um descanso para sua turbulenta existência.  Além disso, no silêncio da sala repousa a idolatrada imagem daquele bela mulher, a mulher que um dia já foi sua, o amor de sua vida, a extinta companheira que o fizera tão feliz agora tocada apenas em seus pensamentos.