Cotidiano

Escritoras dialogam com o curador da Flip na mesa 'De onde escrevo'

PARATY ? Apesar de homenagear a poeta Ana Cristina Cesar e de ter 17 mulheres entre os 39 escritores da programação, a Feste Literária de Paraty (Flip) deste ano foi bastante criticada por não ter nomes negros entre os convidados. E essa questão foi um dos pontos mais comentados na mesa “De onde escrevo”, que inaugurou o Espaço Itaú Cultural de Literatura, mediada pela atriz, MC e escritora Roberta Estrela D’Alva, com a participação das autoras Ana Maria Gonçalves, Andréa Del Fuego, Conceição Evaristo e Maria Valéria Rezende. Curador do espaço, Claudinei Ferreira abriu o debate, que durou 2h30m, de maneira sucinta: “Vocês não vieram para ouvir um homem branco, corintiano, da Zona Leste de São Paulo”.

E a força da voz feminina pôde ser ouvida já na abertura da conversa, quando Roberta afirmou que “esse é o momento das mulheres, de debate sobre o feminismo e o racismo.” Primeira a falar, Conceição explicou a origem de sua escrita.

? Escrevo em homenagem às outras escritoras negras que não estão na Flip, sobre a condição de ser mulher negra das classes populares do país ? contou para a plateia, formada majoritariamente por mulheres.

Ana Maria Gonçalves, vencedora do Prêmio Casa de las Américas por “Um defeito de cor” (2006), alertou sobre a importância da postura de luta para ser tratada como igual.

? Faço literatura engajada, sobre política e gênero. É muito difícil para a gente ser respeitada como autora.Temos que brigar por nosso espaço, para sair desse lugar de personagem exótico. Precisamos mostrar nossa qualidade, outro ponto de vista. Ainda tenho a visão utópica da arte como instrumento de mudança da sociedade. É necessário abandonar modelos e estruturas obsoletas, como nossa política.

O fogo começou a aquecer quando Andréa Del Fuego tomou a palavra: “Primeiramente, eternamente, fora Temer”, para aplausos do público. Questionadas sobre a carta aberta do Grupo de Estudo e Pesquisa Intelectual Negra da UFRJ, que chamou a Flip 2016 de “Arraiá da branquidade”, as autoras foram contundentes em sua aversão à ausência de escritores negros na programação oficial.

? Em 2008, na Alemanha, a então ministra da cultura Marta Suplicy, comentando sobre o baixo número de negros na comitiva do Brasil, respondeu a um repórter alemão que não existiam escritores negros brasileiros à altura daquele evento internacional. Neste ano, em Paris, na delegação brasileira, entre 42 pessoas, tinham apenas três negros. Era a quota para exemplificar a diversidade brasileira. Em abril, entraram em contato comigo para que eu fosse indicada para participar da Flip. Nunca ninguém da organização me ligou ? afirmou.

A escritora também mencionou a informação do convite feito a Elza Soares para participar desta edição.

? Ela é uma mulher incrível, com um dura história de vida. Mas o negro cantor e atleta é lugar comum. Nós querermos ver os negros aceitos como intelectuais, professores ou escritores. Chamar uma pessoa negra também não representa toda a nossa diversidade. Somos muitos. Repito o que digo em Paris: se fosse um festival de gastronomia, com comida bahiana, ou de carnaval, esta cidade estaria enegrecida de pessoas negras. Uma cidadania lúdica não nos interessa. Nossa ausência representa todos os modos de relações da sociedade brasileira. Que democracia racial é essa em que nós vivemos? ? desabafou.

Sentado na plateia, Paulo Werneck, curador da Flip, pediu a palavra após ouvir as debatedoras.

? Fizemos muitos convites sinceros e persistentes a escritores negros. Desculpem-me pela palavra, mas chegamos a aporrinhar alguns autores com nossos convites, mas não foi possível. Reconhecemos essa fala ? disse.

Buscando diálogo, Werneck perguntou às presentes se haveria alguma ponte, algum caminho para fazer essa bibliografia negra e feminina, tão bem conhecida por elas circular e, assim, ajudar a enriquecer a festa.

? Que pena que eu não fui aporrinhada, apesar do meu nome ter sido sugerido para a organização ? respondeu Conceição. ? Eu me sentiria muito feliz em participar, não só por mim, mas pelo coletivo de mulheres negras no qual estou incluída. Talvez, uma das maneiras de você ter acesso a um grupo mais diversificado, parta do processo de escolha da própria coordenação. Poderiam convidar pessoas que transitam em outros meios literários, que estudam temas afrobrasileiros, para que esse processo pudesse começar desde a curadoria ? sugeriu a autora mineira.

Para concluir, Maria Valéria deixou um recado para a plateia:

? Pensem no ambiente, no universo em que vocês estão inseridos. Reparem o quão naturalizado alguns conceitos errados estão em nossa cabeça.