Cotidiano

Drama inspirado em história real e indicado a seis Oscars, 'Lion' estreia nesta quinta no Brasil

Lion 64884843_SC - filme Lion - na foto Sunny Pawar.jpgTORONTO – ?Lion ? Uma jornada para casa?, a partir de quinta nos cinemas, são
dois filmes em um. Na primeira e melhor parte da história de Saroo Brierley, a
câmera do australiano Garth Davis, em sua estreia em longas-metragens, registra
a improvável e trágica aventura de um menino de cinco anos das favelas indianas
tal qual um conto de fadas contemporâneo. Após adormecer em um vagão de trem
aparentemente fora de uso perto de sua cidade, ele acorda, em um dia ensolarado
de 1986, do outro lado da Índia, na caótica Calcutá. Sem comunicação com a
família, é levado a um orfanato, e mais tarde adotado por um casal de
australianos, vividos por Nicole Kidman e David Wenham.

Duas décadas depois, com a ajuda
da revolução digital, o espectador acompanha a busca de Saroo por sua família
biológica, que, ele aposta, ainda aguarda uma resposta para o seu
desaparecimento. Com a passagem de bastão do menino Sunny Pawar, 8 anos, para
Dev Patel, 26, a segunda metade da narrativa é mais sentimentalista, com o uso
de muita música incidental e acenos a ?Quem quer ser um milionário??, de Danny
Boyle, vencedor do Oscar de 2009, também passado na Índia, com o mesmo Patel.
?Lion? disputa seis estatuetas na festa da Academia de Artes de Hollywood,
incluindo melhor filme, ator coadjuvante (Patel), atriz coadjuvante (Kidman),
roteiro, cinematografia e trilha sonora original.

? Decidimos dividir a história em
duas partes e não usar flashbacks, pois queríamos que o público tivesse a
sensação de que estava crescendo com o Sunny. É como se, quando encontrássemos o
Dev, ainda tentando se lembrar com exatidão de seu passado, nós, de nossas
cadeiras no cinema, tivéssemos tido uma experiência mais intensa do que a do
próprio personagem ? diz o roteirista Luke Davies, que usou como material de
pesquisa a autobiografia de Saroo e entrevistas com os personagens de carne e
osso, na Índia e na Austrália.

Um dos pontos altos de ?Lion?, que
contou com a participação entusiasmada das duas famílias durante a produção do
filme, é o tratamento realista dado ao processo de adoção internacional. Mais
conhecido por sua atuação nas áreas de publicidade e design, Garth Davis ?
indicado ao Emmy de melhor diretor de minissérie em 2013, com Jane Campion, por
?Top of the lake? ? trata tanto das alegrias quanto das dificuldades da chegada
de uma criança com vivência familiar completamente díspare a um novo cenário.
Para o papel da mãe adotiva, Sue, ele escalou Nicole Kidman, cujos dois filhos
mais velhos, Bella, 23, e Connor, 21, adotados durante o casamento com Tom
Cruise, foram morar com o pai após a separação do casal, em 2001. Kidman teve
outros dois filhos com o segundo marido, o cantor Keith Urban. Trailer ‘Lion’

? A Sue me contou que teve uma
visão em que claramente sentia que um menino de pele morena chegaria na vida
dela e do marido, o que me tocou profundamente. Mas posso garantir que não houve
fantasia ao se mostrar a realidade de um casal decidido a ter filhos adotando
uma criança ? diz Kidman. ? Garth mostrou o choque cultural dos dois lados, e
pelos olhos de uma criança, o que não é nada fácil.

O dilema de viver ao lado de quem o ama sem restrições, mas ser assombrado pela ideia da mãe e dos irmãos ainda estarem procurando por ele, isso me consumiu de uma forma inesperada.

Patel, em sua primeira experiência
como galã em Hollywood, encarna o Saroo reinventado nas praias do estado
australiano da Tasmânia, corpo sarado de surfista, às voltas com o fim da
faculdade, a entrada no mercado de trabalho e uma enorme sensação de culpa:

? É como se tivesse um buraco que vai crescendo dentro dele. Ele precisa
saber o que aconteceu com sua família biológica. Nunca vivi um papel tão
difícil. O dilema de viver ao lado de quem o ama sem restrições, mas ser
assombrado pela ideia da mãe e dos irmãos ainda estarem procurando por ele, isso
me consumiu de uma forma inesperada.

Com a ajuda da namorada (vivida por
Rooney Mara), do Google Earth e de vestígios de lembranças de um passado
humilde, Saroo retorna à Índia natal. O reencontro com a mãe, Kamla, vivida por
Priyanka Bose, é o ápice de uma saga que, diz Patel, mudou sua maneira de pensar
sobre temas universais como família, amor e compaixão:

Lion - na foto David Wenham Dev Patel e Nicole Kidman.jpg? Quando encontrei Saroo,
perguntei quanto tempo levou sua busca pela família biológica, o que,
obviamente, não poderíamos reproduzir com precisão cirúrgica no filme. Foram
três anos de trabalho árduo, diário, sem cessar! ? conta o ator. ? Ele é um
sobrevivente. Lembro-me de ter me perdido de minha mãe em um supermercado, em
Londres, quando menino, por cinco minutos, e de meu desespero até escutar aquela
voz no alto-falante, ?Dev Patel, sua mãe o espera no caixa cinco?. Imagina o que
ele viveu! O humanismo do filme é sua maior preciosidade.

Vencedora do Oscar de melhor atriz
em 2003 por ?As horas?, Kidman diz esperar que a divulgação da história de Saroo
vá além dos lenços repletos de lágrimas (?Minha irmã, que tem seis filhos, viu
comigo e começou a choradeira aos 16 minutos de projeção, e só parou no fim!?) e
jogue luz sobre o árduo processo de adoção internacional:

? A adoção precisa ser cada vez mais acessível em nossa realidade
globalizada. Sue passou seis anos estudando as leis na Índia e na Austrália para
viver sua maternidade, um aspecto talvez menos cinematográfico, mas igualmente
emocionante em uma história de amor incondicional que ultrapassou todas as
barreiras. Inclusive quando Saroo decidiu reencontrar sua mãe biológica: Sue
estava lá, a postos, para apoiar, uma vez mais, o seu leãozinho. O que você precisa saber sobre o Oscar 2017

AOS 8 ANOS DE IDADE, UM ÍMÃ PARA A CÂMERA

As armadilhas estavam claras para Garth Davis. Seria fácil contar a história
de Saroo no cinema tendo como cenário uma Índia colorida e exótica. Ou, pior,
render-se à estética preguiçosa de um turismo audiovisual da miséria voltado
para as plateias ocidentais. O maior antídoto para os possíveis passos em falso
acabou tendo nome e sobrenome: Sunny Pawar. Escolhido depois de uma seleção que
envolveu duas mil crianças matriculadas em escolas indianas, o menino de oito
anos, em sua estreia no cinema, se tornou um ímã para a câmera do diretor na
metade inicial do filme.

Sunny não fala inglês. Para se comunicar com Davis no set, contou com a ajuda
de um intérprete. O ator-mirim decorou suas falas foneticamente. Na festa do
Globo de Ouro, ele foi aplaudido de pé ao apresentar, sorriso no rosto e de
carona no colo de Dev Patel para alcançar o microfone, ?Lion? como um dos
concorrentes a melhor filme. Patel diz que, depois de duas semanas com
preparadores de elenco locais, ?Sunny se transformou em um profissional
completo?.

? Estávamos aterrorizados com a
decisão de ter uma criança comandando a cena por tanto tempo. Queríamos um
diretor que não tivesse medo de expor emoções na tela, mas aquilo nos parecia
arriscado demais. Até que a câmera descobriu o Sunny e respiramos aliviados ?
afirma o produtor David C. Glasser.

* Eduardo Graça se hospedou a convite do Festival de Cinema de Toronto